Análise – Batman: Arkham Knight
No começo de “Ano Um”, o antológico arco de história escrito por Frank Miller e ilustrado por Dave Mazzucchelli, o então tenente James Gordon diz, em relação à cidade para a qual acaba de ser transferido: “Gotham City. Talvez seja tudo que eu mereço, agora. Talvez seja apenas meu tempo no inferno”. Em Arkham Knight, Gotham está em chamas. E seu tempo nesse inferno será um dos mais intensos e gratificantes que um game pode proporcionar.
Os britânicos da Rocksteady Studios, responsáveis pelos dois primeiros títulos da série, Arkham Asylum (2009) e Arkham City (2011), retomam o comando da franquia, depois de um pequeno hiato ocupado pela “prequência” Arkham Origins (2013), desenvolvida por uma empresa diferente: a canadense WB Games Montréal. Nove meses se passaram desde os eventos de City, e duas ameaças – uma desconhecida e outra, nem tanto – se unem para tentar, finalmente, “quebrar” o Morcego, sob a apropriada escuridão do Dia das Bruxas.
Escalada
Acompanhar o herói através da “pior noite de sua vida” não é incomum para os leitores veteranos. A inspiração vem de uma abordagem consagrada em algumas das melhores HQs do Cavaleiro das Trevas, como a graphic novel “Asilo Arkham – Uma Séria Casa em um Sério Mundo” (roteiro de Grant Morrisson e arte de Dave McKean), que influenciou o jogo de 2009; e a série limitada “O Longo Dia das Bruxas” (argumento de Jeph Loeb e traços de Tim Sale, a dupla dinâmica dos comics), bem lembrada por Alfred no decorrer de Knight – ambas, leituras obrigatórias para qualquer fã de Batman e verdadeiras referências, em termos de narrativa. A conclusão da saga Arkham, por sua vez, embora siga esse modelo familiar, não está livre de problemas, a exemplo de seu antecessor cronológico.
Se a trama concisa e linear de Asylum funcionou muito bem, realçando os ambientes claustrofóbicos da instituição psiquiátrica e transmitindo uma autêntica sensação de confinamento, o enredo disperso de City foi menos eficiente em manter a audiência interessada em todos os acontecimentos da cidade-presídio. Isso se deve, em grande parte, à mudança para o conceito de mundo aberto, em que o excesso de objetivos secundários prejudica o ritmo e desvia o foco – uma característica inerente ao estilo. Knight sofre do mesmo mal. É fácil ficar sobrecarregado com tantas tarefas. Felizmente, assim como em Origins, as missões complementares são divididas em casos distintos (“Mais Procurados”), que podem ser acessados individualmente. Se uma nova pista for descoberta, o alvo selecionado aparece no mapa automaticamente. É possível ignorar essas sugestões e se dedicar somente ao mínimo necessário para terminar a história central, no entanto. E ela é bastante controversa.
Cheia de reviravoltas desde os primeiros minutos, a narração, aparentemente simples, logo torna-se excepcionalmente intrincada, tendendo ao absurdo. É notável a discrepância entre essa obra e o tom mais sério e realista que definiu Origins, um dos pontos fortes do trabalho da WB Montréal (a quem coube uma das mais brilhantes interpretações do Coringa, baseada no clássico “A Piada Mortal” – edição única escrita por Alan Moore e desenhada por Brian Bolland). A veia cartunesca da Rocksteady geralmente mostra-se mais clara no ápice das revelações, mas a tradicional atenção aos detalhes e respeito, pela companhia, à propriedade intelectual da DC Comics compensam os exageros. Destaque para os flashbacks de momentos inesquecíveis na carreira do Homem-Morcego, perfeitamente integrados ao gameplay, sem intervalos entre as cenas.
Lucius Fox ficaria orgulhoso
Os avanços tecnológicos não se resumem à total ausência de telas de carregamento ao longo da aventura. O poder dos novos consoles e uma previsão correta a respeito de suas especificações permitiram o feito audiovisual que é Arkham Knight. Apesar de utilizar um motor gráfico relativamente antigo (Unreal Engine 3, lançado em 2005), a estética corresponde a uma realização completa da impressionante demonstração Samaritan, anunciada durante a Game Developers Conference de 2011 – ano em que teve início o desenvolvimento de AK. Era muito cedo para optar pela versão mais recente (UE 4), e a aposta deu certo.
Rodando em uma resolução nativa de 1920×1080 (full HD) no PlayStation 4, e de 1600×900 no Xbox One, o jogo raramente manifesta quedas na taxa de quadros, e se mantém estável na maior parte do tempo a 30 quadros por segundo – um alento em meio a tantos lançamentos assolados por complicações técnicas, em especial nos últimos meses. O som, cristalino, ganha vida em home theaters e headphones surround, e ajuda até a na locomoção, facilitando o reconhecimento de deixas auditivas. Praticamente um sonar, como um… submarino.
‘Senhoras. Senhores. Vocês comeram bem’
A competência da Rocksteady se estende a dois aspectos da jogabilidade sobre os quais tem exibido absoluto domínio: exploração e combate. O level design de qualidade confere uma liberdade extraordinária ao jogador, que tem inúmeras alternativas para superar obstáculos independentemente da aproximação, normal ou stealth. Como não há transições aparentes, os segmentos furtivos são assinalados pela palavra “Medo” e um símbolo de morcego na tela, para auxiliar na identificação (desde City, as antigas “Salas de Predador” não se limitam a ambientes fechados).
Frequentemente imitado, mas até agora não superado, o sistema de combate Freeflow recebeu ajustes sutis à sua sólida fundação, e se mantém como o padrão a ser batido no gênero de ação em terceira pessoa. No lado da movimentação, os controles, que já eram precisos, foram aperfeiçoados e tornaram a experiência de chutar bundas de bandidos e se pendurar por edifícios ainda mais fluida e prazerosa (emendar disparos do grappling hook é uma das melhorias bem-vindas).
Inovação surgida em Origins, os trechos dedicados à investigação de cenas do crime fazem um retorno e continuam uma das mecânicas mais interessantes. Uma pena que, desta vez, não coloquem exatamente à prova o Maior Detetive do Mundo. Exceto em uma ocasião, a análise se dá sempre da mesma maneira, seguindo a mesma ordem. A despeito disso, bacana ver que a Rocksteady reconhece a herança deixada pela WB Montréal, seja nos diálogos, com várias referências ao episódio da rebelião na Penitenciária de Blackgate, seja nas lembranças que podem ser encontradas na sala de evidências da delegacia de Gotham.
‘Cor e modelo?’ É… preto… um tanque!
Infelizmente, nem todos os elementos da jogabilidade de Knight são impecáveis. A principal novidade do jogo é, justamente, a mais questionável: a inclusão do Batmóvel, como veículo jogável. Ame-o ou odeie-o, ele está intrinsecamente ligado ao game design e quase todas as decisões giram ao seu redor. O próprio tamanho da cidade mudou para acomodá-lo. Com ruas mais largas e escala maior, atravessar o terreno a pé não é uma opção. Por sorte, planar é uma solução igualmente eficaz – e preferível.
Não é que o Batmóvel tenha sido mal implementado. Pelo contrário, sua integração com quebra-cabeças, por exemplo, é bem inteligente e traz ares de contemporaneidade a muitas dungeons (na falta de um termo melhor para classificar as áreas internas dos prédios). O uso do controle remoto economiza tempo, e ativar o modo batalha (em que o transporte anda de um lado para o outro, similar a strafing em um FPS) favorece a movimentação em espaços apertados. Mas a precisão que se tem vestindo o manto do Morcego não se reflete sobre quatro rodas. E nem a inexperiência da Rocksteady (que jamais havia programado um automóvel), nem a chuva torrencial e incessante que cai em Gotham justifica o fato do veículo derrapar pelas vias da cidade como se estivessem cobertas de cascas de banana, à la Mario Kart.
Tal qual o Batmóvel dos filmes de Christopher Nolan, a máquina de AK evoca o design do tanque de “O Cavaleiro das Trevas” (de Frank Miller), com direito a balas de borracha, igual à minissérie (sério). Uma escolha oportuna, considerando a dificuldade em guiá-lo. Os comandos são pouco responsivos, mas ao menos você realmente se sente como o maldito Batman pilotando – uma força a ser reconhecida. Nada de ter sua trajetória interrompida por uma árvore, poste ou mesmo uma gangue de marginais. Objetos de cenário destrutíveis despertam o anarquista em todos nós, e o Batmóvel passa por cima de tudo sem esforço (no caso dos capangas, são eletrocutados de leve e arremessados longe – cabe aqui a mesma licença poética na hora de bater e lançar mísseis em outros carros, sem quebrar a regra de não matar ninguém daquele que diz ser “a vingança” e “a noite”). O combate veicular é divertido, a princípio, mas rapidamente fica repetitivo e tedioso, ocupando segmentos inteiros que poderiam ser melhor aproveitados. E quem achou que seria uma boa transformar uma perseguição a blindados de centenas de toneladas em uma brincadeira sorrateira de gato e rato só pode ter fumado um charuto havano estragado.
A quantidade ridícula de troféus do Charada também tem sido motivo de críticas desde City e seus 440 colecionáveis. Em Knight, o número total foi reduzido para 243, mas apanhá-los segue sendo uma provação. O trabalho, que já era árduo, ficou ainda mais cansativo com a adição de desafios extremamente frustrantes envolvendo o Batmóvel, como percorrer um circuito de três voltas repleto de armadilhas, correndo contra o relógio. Essas porções requerem muita paciência, além de habilidade, para se obter êxito. E depois de incontáveis tentativas e erros, é natural vociferar um volume tão abundante de palavrões, que quem ouvir poderá confundir com uma certa redublagem brasileira oriunda da década de 80. O pior de tudo? Reunir todos os troféus é um dos requisitos para ver o terceiro – e verdadeiro – final (algo sem precedentes na franquia e muito mais significativo que um mero easter egg).
A Rocksteady assumiu um risco enorme ao introduzir o Batmóvel. Trata-se de um dos veículos mais icônicos dos quadrinhos, cinema e TV. Um símbolo da cultura pop, integral ao personagem que carrega. Poderiam ter decidido pelo caminho mais fácil e simplesmente ignorado os pedidos dos fãs, entregando uma continuação que não passasse de um pacote de expansão, da mesma forma que muitas empresas no mercado. O desejo de inovar prevaleceu, contrariando a norma da indústria, que prega a reiteração de ideias à exaustão. Não se saíram tão bem como esperavam, mas estiveram longe de fracassar. Era o que faltava ao universo Arkham, sua evolução natural.
Céu ou inferno?
A segunda parte da história “O que aconteceu ao Cavaleiro das Trevas?”, de autoria de ninguém menos que Neil Gaiman e ilustrações de Andy Kubert, mostra o Batman tendo uma experiência de quase-morte, após o ocorrido no crossover “Crise Final”. Nela, Bruce tem um diálogo com sua mãe, Martha Wayne (na realidade, uma manifestação mental dela). Bruce percebe que o fim inevitável de sua jornada como Batman é a morte, pois ele nunca irá se aposentar ou deixar de ser o herói mascarado. Ela então diz: “Você não ganha o céu ou o inferno. Você sabe a única recompensa que ganha por ser o Batman? Você vem a ser o Batman”.
No final, isso é só o que importa. Em Arkham Knight, você vem a ser o Batman. Ponto final.
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O que eu mais temia nesse jogo era ser um “mais do mesmo” do que foi Arkham City, o próprio Arkham Origins (2013), mesmo sendo desenvolvido pela WB Games Montréal me deixou com essa sensação.
Quando anunciaram que o jogo iria ser desenvolvido na Unreal 3, minha expectativa diminuiu mais ainda, felizmente parece que minha desconfiança com o jogo é equivocada, é tanta gente falando bem e mal do Batmóvel que eu estou curiosíssimo para poder testa-lo, e voltar a universo do Batman depois de quase 2 anos fará com que eu compre esse game nas minhas férias.
Esse review aumentou minha expectativa com o jogo, quero ver as melhorias no combate Freeflow, que até hoje ninguém chegou perto de supera-lo, farei uso de um bom H7 para não perder as escutas auditivas.