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Análise – Batman: The Telltale Series | Ep 1: Realm of Shadows

6.5
Entrou na Feira da Fruta
Com potencial mal explorado, este primeiro episódio é fiel ao herói, mas pouco inspirado e repleto de problemas comuns aos games da Telltale.

Não é segredo para os fãs de Batman quem é o homem por trás do capuz do morcego (Jean-Paul Valley, Dick Grayson, Terry McGinnis, Jim Gordon e outros são exceções). Mas qual é sua verdadeira máscara?

A de playboy bilionário filantropo (não, não aquele) ou de vigilante traumatizado com tendências sociopatas? Essa é a pergunta que a Telltale Games (TTG), de adventures como The Walking Dead e The Wolf Among Us, espera responder com sua série licenciada mais recente, que teve o primeiro episódio lançado no último dia 2 para praticamente todas as plataformas.

Anunciada no The Game Awards 2015, Batman: The Telltale Series teve seus detalhes iniciais revelados algum tempo depois, em um painel realizado em março de 2016, durante a conferência South by Southwest (SXSW). Por meses, especulou-se que caminho a empresa californiana tomaria em relação à franquia da DC Comics, levando em conta a longa tradição daquela em jogos baseados na livre escolha de diálogos que repercutem na narrativa.

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A expectativa era que as facetas mais íntimas do herói fossem examinadas, como sua psique fraturada e a dicotomia entre o homem e o mito, o dia e a noite. Afinal, o gênero adventure aponte-e-clique permite abordar temas complexos como poucos. O painel da SXSW confirmou essas esperanças, de certa forma, com a promessa de uma obra sem laços com qualquer adaptação do Homem-Morcego nos quadrinhos, filmes ou jogos, além de foco tanto no Cruzado Encapuzado quanto em seu alter ego, Bruce Wayne, com consequências das ações de um sobre o outro, e vice-versa. A verdade é que esta primeira tentativa não chega nem perto de alcançar o objetivo desejado, e fica claro que há um grande potencial desperdiçado.

HISTÓRIA

Depois de mais de 77 anos de histórias, escrever algo original estrelando o Morcegão não é tarefa fácil. Ele já “morreu” e foi substituído diversas vezes, se perdeu no tempo e espaço e foi transformado, entre outras coisas, em um bebê. Realm of Shadows deixa o absurdo de lado e procura estabelecer uma visão séria e particularmente violenta para a série episódica (o que explica sua classificação etária para maiores de 18 anos). Não chega a ser sombria como as criações de Frank Miller, ou film noir como Batman Begins e Batman – O Cavaleiro das Trevas, mas busca inspiração nas mesmas fontes e não traz muitas inovações.

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A TTG acerta em mostrar o personagem no início de sua carreira de combatente do crime, a exemplo de Arkham Origins, pois a proposta é que as decisões do jogador venham a moldar e definir o protagonista. Aqui, Batman é uma criatura quase lendária temida pelos bandidos, caçada pela polícia e que ainda não se deparou com nenhum dos famigerados vilões de sua vasta galeria (mas não é preciso esperar muito que acontecer).

A premissa é que Gotham City está tomada pela máfia e o novo Promotor de Justiça, Harvey Dent, se compromete a livrar a cidade da criminalidade caso seja eleito prefeito. Para isso, conta com a ajuda de seu amigo Bruce Wayne, a quem recorre para financiar a campanha contra o candidato à reeleição, o corrupto Hamilton Hill. Mas esqueletos no armário dos antepassados de Bruce podem colocar o legado de sua família em risco e causar a ruína do herdeiro.

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Se soa familiar, é porque o enredo incorpora elementos de tudo aquilo com que supostamente não teria laços: quadrinhos (Ano Um, de Frank Miller e David Mazzucchelli; e O Longo Dia das Bruxas, de Jeph Loeb e Tim sale), filmes (trilogia O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan), jogos (Arkham City, principalmente) e até a série de TV live-action Gotham e a série animada em computação gráfica Beware the Batman (sua única temporada gira em torno da disputa à prefeitura por Dent).

A sensação de déjà vu se estende ao resto da trama, como se a intenção fosse emular o “Nolanverso” em sua essência – o que não é necessariamente ruim. Acontece que esse material não serviu apenas de modelo, foi copiado descaradamente. A maioria das passagens envolvendo Bruce e seu mordomo, Alfred, são reencenações quase idênticas das películas, inclusive com as mesmas falas. É uma linha tênue entre homenagem e roteiro preguiçoso.

Onde o game diverge, e de maneira audaciosa, é na introdução de um amigo de infância de Bruce. Não se trata de Tommy Elliot, e sim de um velho conhecido, com roupagem inteiramente nova (e também levemente influenciada pela série televisiva Gotham), que pode trazer uma dinâmica inédita às relações entre os dois. É cedo para afirmar se faz jus ao clássico, mas uma leitura diferente não deixa de ser revigorante.

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CENÁRIOS

Gotham City, aliás, sempre foi uma personagem em si mesma. Por isso, é uma pena que este Batman tenha ambientes tão confinados. Exploração nunca foi o forte dos adventures da TTG, que buscam uma experiência mais cinematográfica, próxima de ser sobre trilhos – uma mistura dos visual novels japoneses e games em full motion video (FMV) ocidentais (como Phantasmagoria, Tex Murphy, Gabriel Knight, The 7th Guest e The 11th Hour), com uma pitada de RPGs da BioWare (Star Wars: Knights of the Old Republic, Mass Effect, Dragon Age).

Desta vez, no entanto, os cenários são ainda menores e você assume os controles em apenas três situações, sendo que em duas delas há barreiras invisíveis bloqueando seu acesso. As localizações também têm menos objetos interativos. Há um botão dedicado ao inventário, mas, em uma hora e meia de jogo, você apanha somente um item, que é usado logo em seguida.

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DURAÇÃO/REPLAY

Realm of Shadows é curto. Mais curto que muitos episódios dos outros títulos desenvolvidos no Condado de Marin, que proporcionam duas horas de diversão, em média. A falta de interação contribui para aumentar o sentimento de que os pouco mais de 90 minutos de duração são insuficientes para oferecer um desfecho satisfatório.

Considerando que os próximos capítulos sequer tiveram suas datas de lançamento divulgadas (a TTG espera disponibilizá-los até o final do ano, mas seu retrospecto em obedecer prazos não é dos mais favoráveis), o recomendável é economizar com o passe de temporada enquanto todos eles não ficam acessíveis.

Como se não bastasse, o fator replay não é encorajado. Este é um problema recorrente desde a primeira temporada de The Walking Dead – indiscutivelmente o maior sucesso comercial e crítico da companhia até hoje, que determinou o formato “Super Show” de experiências narrativas, combinando conteúdo interativo com entretenimento “scriptado” (quando eventos ocorrem independentemente da vontade do jogador), como na televisão.

Os escritores usam truques para manter a ilusão que muitas das escolhas, das mais importantes às mais banais, realmente são capazes de afetar o resultado. Na realidade, não passam de desvios que levam ao mesmo destino. Isso fica evidente para quem está jogando pela segunda vez. E até de primeira, um bom número das decisões é completamente irrelevante, sem o menor senso de urgência (apesar do limite de tempo para selecionar uma opção). Só não dá pra negar que os possíveis diálogos empoderam quem está no comando.

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FÓRMULA/ENGINE

A essa altura, os games da TTG são tidos por formulaicos, e o do Cavaleiro das Trevas não foge à regra. Os trechos com características de um adventure light se intercalam com segmentos de ação, que são, mais uma vez, um festival de quick time events (QTEs). Estes ficaram mais dinâmicos (leia-se: rápidos) e integrados à jogabilidade – quer dizer, às animações (mais sobre isso depois). Transições menos bruscas entre o apertar de botões e suas ações correspondentes minimizam, mas não eliminam os muitos problemas produzidos (ou não solucionados) pela nova engine.

Batman roda em uma versão atualizada do motor de jogo proprietário Telltale Tool, criado originalmente em 2004, quando a empresa foi fundada, e que estava mais velho e acabado que o Coringa na redublagem Feira da Fruta. Com isso, pretendiam utilizar novas técnicas de renderização não-fotorrealística (estilo HQ) para tornar os gráficos melhores e mais evoluídos que os The Wolf Among Us, por exemplo.

Nesse ponto, conseguiram ter um certo êxito. Os visuais estão relativamente aprimorados e realçam o design da cidade e seus habitantes. Destaque para o uniforme do Morcego, que mescla aqueles de Corporação Batman, Terra Um e Os Novos 52. Já Bruce lembra um irmão perdido de Sterling Archer; e Dent, um parente próximo de Ralph – os titulares das animações Archer e Detona Ralph, respectivamente.

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PROBLEMAS/IMAGEM E SOM

Em contrapartida, a resolução nos consoles PS4 e Xbox One é a menor de um game já lançado oficialmente para qualquer um deles (ARK: Survival Evolved, para Xone, tem uma resolução um pouco menor, mas está disponível exclusivamente em modo preview): 1600×766 no sistema da Sony e 1280×614 pelo lado da Microsoft – nos dois casos, resoluções abaixo de full HD (1920×1080), agravadas pela apresentação letterbox (com tarjas) e total ausência de anti-aliasing no PS4 (que torna os serrilhados mais aparentes).

Se você acha que a TTG agiu deliberadamente para otimizar a taxa de quadros por segundo (fps), prepare-se para se sentir um bobo enganado na casca do ovo. A performance é inconsistente em ambos os consoles, com picos de 60 fps no PS4 e quedas de menos de 20 fps no PS4 e Xone. A taxa de atualização não é travada, então, embora não ultrapasse os 30 fps no Xone, a impressão é de ser mais estável neste aparelho.

Nem a “Master Race” escapou. A versão para PC saiu mais quebrada que uma coluna vertebral atingida pelo Bane, com falhas de áudio e vídeo, além de uma taxa de quadros por segundo abismal (10 fps) até mesmo nas máquinas mais potentes (se fosse o Robin, diria que é porque o computador da Batcaverna não funciona). Um patch com várias correções foi publicado no dia seguinte ao lançamento do jogo, mas alguns problemas persistem e, a julgar pelo histórico da TTG, uma solução definitiva pode não vir nunca.

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É absolutamente injustificável que um adventure com jogabilidade tão  simplificada (basicamente uma interpretação moderna de Dragon’s Lair) tenha problemas de performance em 2016. E não importa que na maior parte do tempo você seja um mero espectador. O impacto na imersão é profundo, especialmente quando você deixa de completar QTEs porque o software resolveu pular alguns quadros de animação.

Uma pena, pois a edição e mixagem de som é impecável, assim como a trilha sonora soturna, digna de cinema. O trabalho dos dubladores varia de excelente a mediano. Incansável e onipresente, Troy Baker (Rhys em Tales from the Borderlands; Joel em The Last of Us; Sam Drake em Uncharted 4: A Thief’s End) tem uma atuação fantástica como Batman/Bruce Wayne, comprovando o alcance do seu talento (ele é a única pessoa que já dublou Batman, Robin, Coringa e Duas-Caras em diferentes mídias).

Laura Bailey (Fiona em Tales from the Borderlands; Nadine Ross em Uncharted 4: A Thief’s End) e Travis Willingham (desde 2010, o Knuckles de Sonic the Hedgehog) são marido e mulher na vida real, e dão voz à Selina Kyle e Harvey Dent, respectivamente. O desempenho deles é razoável, com uma Selina sonolenta e um Harvey caricato demais, destoante do clima estabelecido. Curioso é ouvir Richard McGonagle (Victor Sullivan em todos os jogos da série Uncharted) como Carmine Falcone, uma vez que é impossível não imaginar o Sully fumando um charuto havano sempre que o mafioso abre a boca.

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CONCLUSÃO

O próprio Morcegão reconhece qual é sua máscara legítima. Em Batman Vol 1 n.º 600, ele é categórico: “Bruce Wayne é uma máscara que eu uso, que eu venho usando desde que eu era criança”. E reforça, na edição n.º 624: “Eu uso uma máscara. E essa máscara não é para esconder quem eu sou, mas para criar o que eu sou”. Batman: The Telltale Series, porém, parece sofrer de uma crise de identidade, pelo menos em seu primeiro episódio.

Não faria sentido para a TTG reinventar a roda quando sua especialidade não é ação e a franquia Arkham aperfeiçoou ao máximo aspectos desse gênero, culminando no “simulador de Batman definitivo” (como eu defini Arkham Knight em minha análise). Mas, ao se agarrar à fórmula envelhecida e não ignorar os combates à base de QTEs, a desenvolvedora perde a oportunidade de se aprofundar em ideias frescas e interessantes, como as mecânicas originais de investigação (ligando evidências descobertas umas às outras) e planejamento de ataque (com múltiplas possibilidades) – vistas somente uma vez cada, ao longo da aventura.

Agora, resta torcer para que a Telltale Games ouça as críticas e faça as mudanças necessárias antes do próximo bat-episódio. Até lá, fique ligado neste mesmo bat-escritor, neste mesmo bat-site.

Henrique Bijos
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