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The Last of Us Part II: sucesso da distopia abre espaço para games com temáticas profundas

Qual a função primordial de um jogo?

A primeira resposta dá conta de que um jogo – seja físico, seja digital – tem os objetivos de entreter e de divertir. Teóricos como o holandês Johan Huizinga ainda vão além e defendem que o termo implica em atividades lúdicas que proporcionam o aprendizado de algum tema.

Fato é que os jogos, principalmente com a era dos videogames – desde a década de 1990-, já foram muito associados apenas a temáticas divertidas e ausentes de profundidade em sua história e em sua jogabilidade. Com a função apenas de ‘passar o tempo’, os ‘joguinhos’ costumavam ser encarados como uma potência narrativa inferior a outros produtos do entretenimento, como livros e filmes.

Porém, lançamentos de sucesso como The Last of Us Part II mostram que a indústria de games está preocupada com consumidores cada vez mais exigentes, e que, há muito tempo, os jogos se transformaram em produtos narrativos demasiadamente profundos; e mais: o jogador está longe daquela pessoa que ‘não quer pensar’ e só passar o tempo.

A profundidade narrativa de The Last of US Part II

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Como o próprio nome diz, a parte 2 de The Last of Us é a sequência do game lançado em 2013. A franquia produzida pela Naughty Dog e distribuída pela Sony Interactive Enteirtainement apresenta um futuro distópico onde a humanidade foi desfeita por uma pandemia. Os sobreviventes se organizaram em vilas e precisam lutar para defender suas vidas não apenas da doença, mas também da organização social estabelecida.

No formato de terceira pessoa, o jogador assume o ponto de vista de duas personagens principais: Ellie e Abby – na maior parte do tempo, a partir da primeira. Já neste elemento o game ‘compra uma briga’, ao trazer duas protagonistas femininas, sendo Ellie uma mulher LGBTQIA+. A escolha gerou comentários nas redes sociais, e até movimentos de boicote à franquia.

Porém, a profundidade dramática de The Last of Us Part II vai muito além e explora um futuro distópico em que a tragédia se tornou um plano de fundo para uma total perda de humanidade.

Sentimentos humanos na falta de humanidade

A trama se passa cinco anos após os eventos do primeiro The Last of Us. Ellie, personagem imune à doença, sai em busca de vingança pela morte de Joel e pelos atos da Frente de Libertação de Washington (WLF). O objetivo é sobreviver em meio aos destroços de Seatle.

Naturalmente, o game ficou mais tenso pelo próprio momento em que foi lançado: no meio de uma pandemia. As reflexões sobre o impacto de uma doença na sociedade parecem bem mais reais em 2020. Toda a profundidade dramática vai sendo construída com o auxílio de uma fotografia digna de cinema e do roteiro escrito por Halley Gross, escritora responsável por alguns episódios de Westworld, série da HBO.

“Eu acho que nossos personagens são profundamente falhos. Mas eles também são repletos de esperança, beleza e amor. Espero que qualquer pessoa que jogue esse jogo encontre um personagem que realmente os motive.”, citou a roteirista.

Em meio ao caos, The Last of Us Part II destaca que o ‘fim do mundo’ não está somente em uma tragédia que escapa ao controle da maioria dos indivíduos, mas também dentro de cada uma das pessoas. Enquanto a realidade que conhecia se degradou completamente, Ellie precisa encarar o seu próprio ‘inferno’ e lidar com sentimentos estritamente humanos, como a vingança e o ódio.

Como citado por um dos produtores do game, Neil Druckmann, The Last of Us Part II é uma “história sobre o ódio”. Em certos momentos, o ponto de vista do jogador apenas assiste o ciclo de violência que completa a total desordem social em um mundo tão hostil. Em outros, assume a figura de Abby e enxerga todo o conflito a partir de outra perspectiva.

Muito além de um jogo apenas para passar o tempo, The Last of Us II apresenta uma reflexão intimista sobre o ser humano e a sociedade perante às tragédias e à degradação do mundo.

A chegada de The Last of Us Part II

No decorrer dos dias, The Last of Us Part II bateu recordes na Playstation. Nas duas primeiras semanas de comercialização, foram 4 milhões de cópias vendidas. O jogo teve grande sucesso em mercados muito fortes para a indústria: Estados Unidos e Europa. No país norte-americano, inclusive, ficou atrás só de God of War e Spiderman na lista dos games exclusivos da PS mais vendidos da história.

Como The Last of Us Part II pode impactar todo o mercado de games?

No mês de julho, o posto de jogo mais vendido nos EUA também foi ocupado por um game de ação e aventura: Ghost of Tsushima. O game lançado para Playstation 4 também apresenta um clima mais profundo e aposta na complexidade narrativa para a criação de sua estrutura geral.

A relevância dos jogos para pensar

O interesse do público em games mais complexos pode vencer os limites das franquias de ação e aventura e atingir outros nichos na internet. Um exemplo disso é o mercado de poker online, que cresceu 150% só no primeiro semestre de 2020, abrindo portas para que sites que promovem jogos pela internet atraiam cada vez mais pessoas. O poker é, por sua essência, um esporte que explora sentimentos e reações inerentes ao ser humano, como controle emocional e inteligência para manipular situações. Além disso, exige foco e concentração.

Apesar dos simuladores de corrida e dos games FPS ainda dominarem o ranking de downloads nas principais lojas de aplicativos, os jogos de desafio e raciocínio já mostram sua força. Títulos como Ludo King e Tangle Master 3D figuram entre os 10 apps de jogos mais baixados em julho de 2020, por exemplo.

De acordo com o CEO da Etermax, empresa especializada no desenvolvimento de games, Maximo Cavazzani, o interesse em games para pensar já exisitia, porém, ganhou força com a multiplicidade de opções para o desenvolvimento de aplicativos interativos e desafiadores.

“Jogos de palavras, lógica e trivia, que ajudam a exercitar a mente, sempre existiram. O que não existia era um time prestando atenção nas preferências dos consumidores e pronto para adaptar suas estratégias para satisfazê-los”, citou Cavazzani em entrevista ao CanalTech.

O xadrez, outro esporte essencialmente focado no raciocínio mental, também apresentou crescimento relevante durante a pandemia. De acordo com o site chess.com, entre março e abril de 2020, o número de jogadores na plataforma quase dobrou em comparação com o mesmo período de 2019. O mesmo aconteceu com os cadastros, que cresceram de 24 mil para 53 mil mensalmente, em média.

Assim, esse tipo de crescimento mostra que os jogadores na web não procuram apenas gráficos exuberantes e jogabilidade confortável; eles também querem pensar.

E o gosto por jogos mais profundos e difíceis não se faz apenas no mundo digital. De acordo com a Pesquisa Game Brasil, de 2019, 28% dos brasileiros usam os boardgames (ou jogos de tabuleiros) para se divertirem, enquanto 34% jogam cartas. A Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) aponta que a indústria dos jogos analógicos cresceu 7,5% entre 2018 e 2019. A expectativa é que com a quarentena, 2020 apresente números ainda mais otimistas.

Games e cinema: fusão cada vez mais próxima

A tendência dos games se aprofundarem em questões dramáticas e narrativas se intensifica com o desenvolvimento da tecnologia. As demonstrações gráficas da Unreal Engine 5, nova geração de motores gráficos produzida pela Epic Games, trazem imagens impressionantes que poderão ser aplicadas no Playstation 5 já em 2021.

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A aproximação entre cinema e games pode se justificar até por análises das próprias preferências dos consumidores. De acordo com a Pesquisa Game Brasil (PGB), de 2020, dentre o perfil hard gamer, 74.1% dos indivíduos gostam de assistir filmes de ação, enquanto 68.4% assinam Netflix.

Portanto, uma indústria de games cada vez mais cinematográfica aumenta o intercâmbio entre as artes não apenas para a adaptação de franquias famosas nas telonas, mas também para a utilização da estrutura complexamente narrativa dos filmes no enredo dos jogos.

A tendência é que os games explorem a proximidade com o real para criarem personagens mais identificáveis para os seres humanos, reproduzindo sensações, questionamentos e discussões profundas e relevantes para a vida em sociedade.